quinta-feira, 23 de agosto de 2012

GRÃOS DE CAFÉ CUSPIDOS POR MAMÍFERO - ALTA QUALIDADE



Grãos cuspidos por mamífero, Cuíca, em fazenda no ES renderão café de R$ 900 o quilo

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22/08/2012-05h03
LUIZA FECAROTTA | Folha de São Paulo
ENVIADA ESPECIAL A PEDRA AZUL (ES)
À primeira vista, não dava para entender por que diabos aqueles grãos de café, meio gosmentos, surgiam amontoados sob as árvores - religiosamente, da noite para o dia.
Ao amanhecer, era sempre igual: os roceiros se enfiavam no meio do cafezal para fazer a colheita manual e davam de cara com uns grãos, já sem casca, sobre as folhas secas no chão. Algum animal ali da mata andava a chupar esses frutinhos adocicados.

Depois de muito fuçar, Rogério Lemke, o administrador da fazenda Camocim, na qual se espalham 120 mil pés de café em Pedra Azul, a 100 quilômetros de Vitória, no Espírito Santo, matou a charada.
Eram cuícas, pequenos mamíferos silvestres, que guardam certa semelhança com um rato. Os bichos se penduram nos galhos mais baixos das árvores, à noite, para se alimentar da casca, da polpa e do mel do café. Escolhiam sempre os melhores frutos, como em uma "colheita seletiva".
  Divulgação/CulturaMix
Cuíca, o "bicho de bom gosto"
Cuíca, o "bicho de bom gosto" 

Depois, as cuícas dispensavam os grãos, ainda com algum resquício do mel sobre o pergaminho (película entre a semente e a polpa). Para evitar prejuízo, com o desperdício de grãos, o carioca Henrique Sloper, dono da fazenda, resolveu recolher essas sementes "cuspidas".
A partir daí, como revela a Folha, Sloper decidiu fazer testes de secagem e torra para descobrir, na xícara, o que eles poderiam render.

Depois de um ano de avaliações, o café da cuíca deve ser lançado em novembro por pelo menos R$ 900, o quilo. Em média, um pacote de mesmo peso de um café especial custa R$ 60 - os grãos cuspidos pelo animal custarão, portanto, 14 vezes mais. Bicho sem carisma, a cuíca, quem diria, vale ouro.
Seu João Pagio Fiorezi, 61, fornece mudas de café há 25 anos para a fazenda Camocim, no Espírito Santo.

Café de Cuíca

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Sandro Castelli
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Os pés de café ficam com os frutos maduros entre abril e setembro; começa a colheita
Seu João saltou do caminhão, adentrou o cafezal, aproximou-se de uma árvore em área mais reservada, ou seja, mais afastada de casas e estrada, e mais perto da mata. Agachou-se e abriu os galhos mais baixos para espiar.
"Esse é o café da cuíca", disse, pegando um punhado de grãos despolpados (sem casca nem polpa) nas mãos. Aquele café tinha cheiro forte, remetia à terra e ao universo animal - mas o odor não chegava a ser ruim. Os grãos estavam com uma gosma, ainda resquício do mel do café.

TÍMIDAS E CRITERIOSAS

Marcelo Justo/Folhapress
"Cuícas são incapazes de comer café verde ou estragado", diz especialista; colheita dos grãos cuspidos pelos animais é realizada manualmente por roceiros que se agacham junto aos pés de café e pegam grão por grão
"Cuícas são incapazes de comer café verde ou estragado", diz especialista; colheita dos grãos cuspidos pelos animais é realizada manualmente por roceiros que se agacham junto aos pés de café e pegam grão por grão  












E as cuícas? Não foram encontradas nem por decreto. Enfiam-se no meio da mata e ali ficam, escondidas.
São animais ariscos e noturnos, que gostam de comer somente os grãos adocicados, no ápice da maturidade.
"Elas têm um ótimo critério de seleção. São incapazes de comer café verde ou estragado", diz Evair de Melo, presidente da Incaper (Instituto Capixaba de Pesquisa, Assistência Técnica e Extensão Rural), que ajudou a desenvolver os cafés de jacu e cuíca na fazenda.

As cuícas surgem por ali aos montes porque a área é circundada de parques nacionais e mantém parte da mata nativa - à semelhança da cabruca, o sistema de plantio de cacau típico do sul da Bahia, que conserva a mata para sombrear os cacaueiros.

Na propriedade de produção orgânica, pipocam hortênsias arroxeadas, margaridas do mato amarelinhas, amarelinhas e pitangueiras carregadas de fruta.

A colheita desses grãos cuspidos pelas cuícas é trabalhosa, feita manualmente por roceiros que se agacham junto aos pés de café e pegam grão por grão acomodando-os em sacolas a tiracolo.
É fundamental que seja realizada regularmente para que os grãos não fermentem sobre o chão - é comum ficarem protegidas pelas folhas das árvores da mata ali conservada, que servem de adubo natural ao cafezal.

Os grãos colhidos são transportados para secar em um terreiro suspenso, protegido por estufa, com umidade e temperatura controladas. Depois, são separados de gravetos e afins manualmente e estocados na tulha para que descansem antes da torra.
Para chegar à xícara, passa por testes de perfis diferentes de torra, provas profissionais - quando o grão é moído grosso, entra em contato com a água quente e é sugado de forma a cair homogeneamente sobre a língua.

Raio-x da Cuíca
Como é É um mamífero marsupial - como o canguru, as fêmeas são dotadas de uma bolsa chamada marsúpio, que contém as tetas e serve para carregar os filhotes
Onde vive É encontrado na região que vai do México à Argentina
Quanto mede Quando adulta, seu corpo pode alcançar cerca de 30 cm de comprimento
Que cor tem Seu dorso é cinza-escuro, e as partes inferiores, amarelo-clara e manchas da mesma cor acima dos olhos
O que come Animal onívoro que se alimenta de matéria vegetal e animal - metade da sua alimentação é de frutas.Tem entre 40 e 50 dentes

O JACU PIONEIRO
A cuíca não é, contudo, o primeiro animal a "participar" do processo de produção de cafés especiais no Brasil.
Quem emplacou de forma pioneira foi o jacu - ave robusta, com bico pronunciado e papo vermelho. Seu café foi vendido pela primeira vez em 2007, também pela fazenda Camocim. Atualmente, são produzidos 950 quilos por ano a R$ 450, o quilo.
Conhecido como "faisão brasileiro" e também semelhante a um urubu, esse animal era uma praga para a plantação de café.

"O jacu comia muito do meu café, dava o maior prejuízo", diz Henrique Sloper, dono da Camocim. "Muitos fazendeiros matavam o bicho, ficou quase extinto."

Inspirado no kopi luwac, o famoso café da Indonésia, cujos grãos são retirados das fezes da civeta (animal semelhante ao gambá) e que podem custar US$ 493, o quilo (cerca de R$ 1.000), o café de jacu surgiu para solucionar esse problema no cafezal.
"O que era uma praga virou fonte de um produto de alta qualidade", diz Sloper.
Tanto o jacu quanto a cuíca escolhem os frutos mais maduros e sem defeitos para se alimentar - por isso, geralmente, resultam em bebidas de doçura acentuada.

PREÇO
O fazendeiro vê nesses cafés exóticos uma grande fonte de lucro. Ao consumidor, resta a pergunta: vale mesmo pagar um valor tão alto?
Especialistas apontam pequenos problemas na primeira amostra, que podem ter sido gerados pela torra excessiva.
Sloper, por sua vez, diz que ainda fará ajustes nessa etapa para que possa extrair o melhor desses grãos, torná-los mais delicados e adequados para o preparo no coador, método que deixa suas características à mostra com mais clareza.
Espetacular na xícara ou apenas razoável, o café com a contribuição da cuíca conta uma boa história. Não tenha dúvida: isso também tem um custo.

QUANTO CUSTA O QUILO?
CUÍCA - R$ 900
Os grãos cuspidos pelo roedor são recolhidos manualmente do chão e secos em terreiro suspenso
JACU - R$ 450
Os frutos maduros comidos pela ave são liberados nas fezes, que não têm cheiro, e limpos manualmente
CAFÉ ESPECIAL - R$ 60
São cafés de qualidade superior à média, feitos só de grãos arábicas, com doçura e acidez equilibradas
SURGEM RESSALVAS À 1ª LEVA, PRODUTOR VAI MUDAR A TORRA
Marcelo Justo/Folhapress
Isabela Raposeiras, do Coffee Lab, não gostou da baixa acidez da 1ª amostra
Isabela Raposeiras não gostou da baixa acidez da 1ª amostra
Com a primeira amostra do café da cuíca, que não circulou comercialmente, a Folha convidou três experts para provar a bebida às cegas. Isabela Raposeiras, do Coffee Lab, Marco Suplicy, do Suplicy, e Cecília Sanada, do Octávio Café, aceitaram o desafio.

Fizeram provas informais com uma pequena quantidade de grãos. Ficaram de lado os protocolos rígidos de degustações profissionais - a ideia era somente colher primeiras impressões de especialistas.

Marcelo Justo/Folhapress
Marco Suplicy, do Suplicy Cafés Especiais, identificou uma nota vegetal, de mato
Marco Suplicy identificou uma nota vegetal, de mato
Do balanço geral dessa primeira leva, surgiram três pontos de tangência: baixa acidez, doçura acentuada e torra um pouco exagerada.
Foram as mesmas conclusões a que o norte-americano Andrew Barnett e o holandês Willem Boot (ambos provadores profissionais) tinham chegado na última semana em prova acompanhada pela Folha na fazenda capixaba.

Marcelo Justo/Folhapress
Cecília Sanada, do Octávio Café, acha que a "bebida não é acima da média"
Cecília Sanada acha que a "bebida não é acima da média"  

EXCESSO DE TORRA
Para Isabela Raposeiras o excesso de torra inibiu o potencial do café.
"Esse café cru deve ser de qualidade,
 tem doçura elevada e é limpo. Mas a acidez é muito baixa
 [especialistas se referem à acidez como sinônimo de qualidade]."

Marco Suplicy achou a bebida "agradável", com "bom corpo" e "nota de mato". "Mas sinto uma aspereza, não é uma bebida nem mole, nem estritamente mole [as melhores categorias da bebida]."
Já Cecília Sanada diz que o café perde em aroma. "Não é acima da média." Por outro lado, chama a atenção para a doçura acentuada e para um "amargor que não chega a atrapalhar a bebida".
Segundo o fazendeiro Henrique Sloper, o lote que vai chegar ao mercado em novembro passará por ajustes de torra a fim de fique "mais delicado".

Provador ajudou a criar cafés de animais
Filho de agricultor, Evair Vieira de Melo nasceu em Venda Nova, no interior do Estado do Espírito Santo, em abril de 1972.
Conheceu energia elétrica aos 15 anos. Falou ao telefone pela primeira vez aos 18. Nem sequer viu a Copa de 82 - a de 86, ouviu pelo rádio.
Hoje, é um dos provadores de café mais respeitados do Brasil e o único juiz que vai, todos os anos, avaliar os grãos mais caros do mundo na Indonésia - o kopi luwak.
Há cem anos, sua família trabalha no cafezal. Seu avô materno ainda é vivo. Tem 92 anos e é analfabeto - "só saber ler carta de baralho e nota de dinheiro".
Quando jovem, Evair estudava à noite, depois de caminhar seis quilômetros, com a mochila nas costas - seis para ir, seis para voltar. Pagou a faculdade de administração com pães e biscoitos que sua mãe fazia, e ele vendia.

Marcelo Justo/Folhapress
Evair de Melo, 40, respeitado provador profissional de café
Evair de Melo, 40, respeitado provador profissional de café  

Em 1997, ganhou uns trocados para encher o tanque da Brasília de seu pai e se mandou para uma festa de agricultores nas redondezas. Foi se esconder da chuva em uma barraca e esbarrou, acidentalmente, num sujeito que viera de São Paulo para dar cursos de qualidade de café. "Eu tinha ouvido falar que provador de café era o cara, era o cara."

Aí que recomeçou sua caminhada no mundo do café, no qual ele foi cavucar o que de bom se podia extrair de cafés da Zona da Mata, de péssima fama, deu consultorias, fez provas pelo mundo.
Não sabia nem de quem se tratava na época, mas foi anfitrião do fotógrafo Sebastião Salgado, num ensaio de cafezais brasileiros, que lhe custou 45 dias de viagem.

1.200 XÍCARAS POR DIA
E assim foi. Estudou análise sensorial de água, de fruta, de arroz, de chá, de perfume, de... carro! E hoje participa de provas profissionais de café em que, em um dia, chega a avaliar 1.200 xícaras. "Precisa ter equilíbrio emocional e estar bem fisicamente em dia de prova", diz Evair.
E foi ele, hoje presidente da Incaper (Instituto Capixaba de Pesquisa, Assistência Técnica e Extensão Rural) e do Conselho Nacional dos Sistemas Estaduais de Pesquisa Agropecuária, que ajudou a desenvolver os cafés de jacu e de cuíca. Agora está de olho em um macaco e outras aves nativas.




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Pablo Picasso

Li-Sol-30
 Fonte:
http://www.revistacafeicultura.com.br/index.php?tipo=ler&mat=45879&&utm_source=feedburner&utm_medium=email&utm_campaign=Feed%3A+RevistaCafeicultura+%28Revista+Cafeicultura%29
 

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